Poesia - Sílvio Fiorani

Death of casagemas, Pablo Picasso - Early/Blue Period Paintings

Ode a Raul Kreisker

Não é ele o morto,
mas eu, a quem
ele já não ouve nem vê.
O morto sou eu,
que fico assim privado
de meu confessor,
sem poder expressar
as insanidades
de que sempre fui capaz
como o brilhante insensato
que ele me ajudou a ser
para que eu tivesse como prêmio
apenas a virtude de ser livre
e não ajustar-me ao que quer que fosse.
A grande desgraça, pois:
essa mania de liberdade
que se abateu sobre mim,
ferindo-me com as minhas próprias flechas.
Ele morto, morro eu.

Morro porque morro.

Ah, como me valem agora
as santas palavras
da santa das palavras.
Teresa d’Ávila rogai por mim.

Sei agora, pelo menos, alguma coisa
dessa arte de não ser nada,
e morro muito mais.
Morro a cada dia
com as promessas
de ser tudo a cada jornada,
de ter cada uma delas
agarrada em minhas mãos
como o patrimônio de um reles usurário.
Mas, na contabilidade do tempo,
não é o dia que ganho,
não obstante os cotidianos sonhos;
antes, é um dia a mais que perco:
o cruel paradoxo a que damos o nome de vida;
um dia a menos,
segundo a conta da eternidade de que me aproximo;
essa eternidade desconhecida de onde vim
e na qual não vivi e nem mais viverei,
cessando de existir, a um só tempo,
tudo o que amei,
tudo o que temi,
tudo o que tive, tudo o que juntei
e que vou perdendo a cada dia que passa,
um pouco a cada jornada.

Tudo morrerá
para os meus sentidos
e os sentidos dos outros que também morrerão
para mim e para eles mesmos.
Tudo morrerá.
Até mesmo estas linhas
que escrevo porque escrevo
apenas porque não foi ele quem morreu.

Morto ele, morro eu.

SP, 12.02.2009