... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...

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Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano II Número 14 - Maio 2010

Ensaio - Ronald Augusto


Por uma leitura tresloucada!

A leitura equívoca; a leitura à revelia das boas ou más intenções do autor; a leitura que “está andando”, que manda o autor passear; a leitura feita em decúbito dorsal ou ventral; a leitura que se faz na rede, pênsil entre uma árvore e outra, que se faz no ônibus, no metrô; a leitura que se faz (se desfaz) quando não se tem um tostão no bolso, quando se padece de uma afecção respiratória; a leitura que se faz quando se está às turras com a patroa ou de bem com o seu bem, etc, etc, etc. Enfim, qualquer leitura - e seria injusto dissociá-la das mínimas circunstâncias que nos estimulam a moldar e cristalizar um sentido para esse dispêndio de atenção exigido pelo poema, sentido que é inextrincável da perturbação do instante precário -, qualquer leitura tosca é preferível à exegese consagrada e consagradora do “controle institucional da interpretação” (Frank Kermode) que, às vezes mais, outras vezes menos, é obra tocada pela academia, pelos jornalistas e colunistas da imprensa especializada, pelos poetas mistificadores, pelo mercado editorial e pelos intelectuais medianos ocupantes de cargos públicos ou de instituições privadas aparentemente interessados em questões culturais.


“Só a antropofagia nos une” (Oswald de Andrade). A tresleitura - e o autor de Serafim Ponte Grande, este grande não-livro (1933), é o seu maior inventor e representante - serve como salvaguarda contra a presunção de uma interpretação teorizante e toda-poderosa, que reifica o poema de modo a fazer com que sua existência se justifique apenas para servir às necessidades desta mesma interpretação, refém de uma série de interesses e imposturas.


Qualquer ato comunicativo, interessado principalmente na transmissão de uma mensagem sem ruído - um conteúdo duro, digamos assim -, só se efetiva na medida em que emissor e receptor dividem o mesmo código. Uma convenção, ou um acordo prévio entre estas duas partes, permite ao receptor dispor de um repertório necessário para fazer a decodificação da mensagem-conteúdo desencadeada ou estabelecida pelo emissor.


Na comunicação poética, ao invés de uma “mensagem” - um conteúdo duro, situado, como se fora possível, antes ou depois da fatura mesma do poema -, o que se comunica é um poema, esta verdadeira tensão-coesão de som e sentido. Isto é, temos aí uma transmissão mais de formas do que de conteúdos. Neste caso, o leitor não decodifica o poema-mensagem, pois não há acordo prévio, nem convenção normatizando as relações semânticas, ele o re-inventa, ou o interpreta (em sentido musical). Com efeito, o poema “de saída” criado pelo poeta não é o mesmo poema “de chegada”; neste ponto de dobra o leitor o frui na liberdade do seu silêncio, na música do seu pensamento ou, ainda, no ritmo da sua enunciação vocal.


Não há um lugar de equilíbrio entre as vontades de significação do poeta-remetente e do leitor-destinatário. Suas figuras apresentam-se instáveis. Pois, como nos ensina Roman Jakobson, “a ambigüidade se constitui em característica intrínseca, inalienável” da poesia. Portanto, continua o lingüista russo, não só o próprio poema, mas igualmente seu destinatário e seu remetente se tornam ambíguos. Neste extremo do processo da comunicação poética, a coisa muda de figura. Um poema é sempre outro.


Para o leitor, o poema se apresenta, num primeiro lance de aproximação, como que vertido em língua estranha, mas remotamente familiar. Do ponto de vista da comunicação poética, a imagem da leitura como “operação tradutória” se impõe de modo decisivo. A comunicação poética, ou o poema entendido como “hesitação entre som e sentido” (Paul Valéry), pressupõe certa dose de intraduzibilidade. Mas, intraduzibilidade esta, que se resolve no instante em que o leitor-poeta assume a responsabilidade pela co-autoria daquele texto (que não se entrega numa primeira leitura) por meio de um gesto de interpretação livre. Tradução-leitura envolvente, convertida em transcriação (para usar um conceito de Haroldo de Campos). O leitor produz, a partir do seu desejo de linguagem, uma versão que mais se presta a uma di-versão do que a qualquer outra coisa. Cada nova leitura indicaria, assim, um desvio de rota. Uma desleitura: tresleitura.