... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...

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Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano II Número 14 - Maio 2010

Conto - José Miranda Filho

Miltão dos Santos, Procissão, 40cm X 60cm, óleo/acrílico sobre tela

O Retrato do Sertão – 2

O sítio Poços dos Anjos amanheceu triste e desolado naquele dia de sol quente. De manhazinha toda vizinhança já sabia da morte de Nhá Marina, pois Sá Lorena, a vizinha mais próxima, já havia espalhado a noticia. Ao meio dia toda a vizinhança já estava em volta da rede contendo o corpo esguio de Nha Marina.

Morreu que nem um sabiá, disse Maninha com o filho caçula no colo.

- Que Deus guarde sua alma, clamou Sá Lorena, com um ramo de flores silvestres embebido em ervas medicinais que trouxera para benzer o defunto, malgrado a vontade dos filhos que a queriam longe dali por ser muito faladeira e gostar de envolver os vizinhos em fofocas graves.

Réquiem sertanejo ao redor da cama num coro uníssono e repetido por todos os presentes, fazia-se ouvir à distância. Acantáceas em formato de feixes foram colocadas ao lado da defunta para - segundo a lenda da região – evitar que as bromas destruíssem o pano da rede caprichosamente tecido com bordados feitos à mão e alusivos às coisas do sertão. O Pároco mais próximo ficava em Laranjeiras, muito longe dali, por isso chamaram Mãe Crisalda, parteira e benzedeira, gorda e baixinha que morava na redondeza. A ela coube a incumbência de preparar o corpo, consagrá-lo, lavá –lo e vesti-lo. Ramos de folhagens de várias espécies molhados com água e sal, eram passados de mão em mão para que todos a aclamassem e abençoassem o corpo. Não se ouviam choro nem lamúrias, apenas rezas.

Ninguém chora por quem morre no sertão, acostumados com o sofrimento da vida. A morte para o sertanejo é o melhor dom que Deus pode lhes dar. São fortes e corajosos para prosseguir a jornada, porém, covardes e inseduzíveis para dar cabo à própria vida. Jamais se teve notícia que um sertanejo se trucidou por dificuldade financeira, fome ou miséria. Rasteja sua própria vida sofrendo em silêncio, buscando melhores oportunidades. Às vezes permanecem meses e anos à espera da chuva que não vem, mas, dificilmente arreda o pé do sertão castigado pela seca e pelo desprezo dos governantes. A esperança da chuva é o único alento que ainda o prende àquele pedaço de chão; a morte, é o descanso eterno de quem passa a vida inteira sofrendo os agouros da seca e da fome.

Terminada a cerimônia do velório, Zé da Vila e mais três de seus filhos - os mais velhos - dois em cada extremidade da rede seguiram com o féretro até o cemitério de “seu Quincas”.

Cemitério é o que menos falta no sertão. Todo sertanejo, seja rico ou pobre, possui um ao entorno da casa para enterrar seus entes queridos, porém, por entrave da família que não desejava enterrá-la próximo à casa em que viviam enquanto os filhos diziam que a pedido da mãe, resolveram sepultá-la no cemitério de “seu” Quincas, padrinho de Agamenon e patrão de seu primeiro marido.

O desejo da falecida fora acatado.

Enterraram Nhá Marina sem que ela conhecesse os bisnetos, deixando uma lacuna na família e um vazio nas noites, quando no alpendre da casinha de taipas, depois do jantar e sob a luz das estrelas reuniam-se para ouvir estórias de assombrações e aventuras de Lampião.

As noites seguintes eram vazias. Durante o dia suportavam a dor de sua ausência, enquanto todos estavam envolvidos nos afazeres da roça. Mas à noite ...era só tristeza e desânimo. De quando em quando “seu Quincas” passava por lá para prosear um pouco e se queixar da seca que enfrentavam pela falta de chuva e do alimento que já começava a escassear. O pouco que tinham pra comer provinha do coronel Saturnino, político de Angico, com a ajuda do capitão Virgulino, de quem era compadre e coiteiro. Mas, nada disso é o desejo do sertanejo. Ele só espera pela chuva, com a qual sobrevive à seca, planta e colhe, sem precisar esmolar de qualquer político corrupto o sustento da família, que só lhe traz subserviência e desonra. Se tem água, tem tudo. É o único bem que pede a Deus todos os anos, meses e dias, através de novenas, em procissões carregando imagens de “santos” roubadas de igrejas, mas que já não surtem o efeito desejado. Porém, a fé, a coragem e a persistência permanecem intactas na vida de cada um. Esses dogmas jamais lhes faltarão!

Enquanto houver esperança ao sertanejo, jamais faltará vida no sertão.